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Desdobrei a minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o meu itinerário
até ao meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.
E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.
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Poema: Alejandra Pizarnik, Festa.
Arte: Edward Hopper. Lado leste interior, 1922.
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20 comentários:
O poema citado acima é da poetisa e ensaísta do século XX, Alejandra Pizarnik, que na linguagem possui caráter argentino, mas no sangue, veias de imigrante russa que procurou nas palavras oníricas, a identidade a qual lhe faltou na cidade de Buenos Aires, lugar que a recolheu às escondidas dos homens nazistas, mas que não soube acolher com abraços, aquela judia que não se reconhecia como pessoa, refugiada, longe de tudo, nos braços da poesia. Alejandra ou Flora, as duas eram mulheres intensas, mescladas no resultado surrealista transbordado das obras carregadas de noturno. O nome verdadeiro de Alejandra é Flora, sendo o primeiro usado na carreira, talvez para explicitar a crescente dificuldade da autora em aceitar-se, usando como fuga um nome que não é seu, um espaço o qual não lhe confere existência. Apresento-lhes a poetisa de hábitos soturnos, moradora contemporânea do absurdo metafísico.
Não precisa ser bom entendedor de literatura para perceber as principais características da escritora são marcadas pelo diálogo com o silêncio, o escuro, a solidão e a noite. De hábitos góticos, dedica ao movimento surrealista todos os seus dons artísticos, desde as palavras até aos pincéis fantásticos do subjetivismo. Desse modo, lê-la exige do leitor crítico, a calma do vento na respiração respeitada pelo entrecortar da mente racional freada pelo irreal. Suas metáforas entregam-nos a possibilidade de construir significados através da consciência, aspecto deixado de lado na sua poética, já que caminha incessante, às trilhas do inconsciente indissociado de sentido vocabular, expressão contida no significante, não no significado. Através da ressignificação transmitida pelo eu-lírico, podemos descobrir no desligamento com as ideias prontas, um cotidiano explorado de renovação, que é a proposta de Pizarnik. Um mundo menos real. Mais ideal.
Mitificada pelo público, como todas as escritoras suicidas, Alejandra deixou-nos a imagem de mulher desintegrada, ávida pela fragmentação da matéria, que vai ao encontro da morte, seu desejo nos últimos anos de vida. Bela adormecida quis dormir vencida nos beijos comprimidos por um amor não rendido, concebidos sem demora pelos outros comprimidos, aqueles que deixam de ser verbo para serem pássaros na garganta muda de tanto pedir socorro à loucura. As superdoses de seconal salvaram-lhe da vivência doída de existir sem amar-se, sem ser amada, sempre atormentada pelo universo fraturado e ciclotímico, explanando com legitimidade os sentimentos que lhe arraigavam, ilimitados nos meandros alternados de felicidade e tristeza, ocasionados por motivos vários, amordaçados desde a adolescência inadaptada pela gagueira até aos problemas financeiros da família. Alejandra Pizarnik sabia que a única embarcação era a palavra, mesmo esta não podendo mantê-la protegida do naufrágio, de si mesma. Tanto que na última fase de seus escritos, começou a escrever num estado de incoerência sintática e a usar termos aleatórios sem concordância, que afinal, eram o espelho da insatisfação da poetisa com a vida.
A mais bela característica literária, sem dúvida, é quando ela usa o físico para refletir as dores psíquicas, às vezes como metonímia a fim de simbolizar algum signo relativo ao interior, ou como simples metáfora. Recurso poético encontrado no poema "Festa" ao dizer "E bebi licores furiosos/para transmutar os rostos/num anjo, em copos vazios", mostrando-nos o desejo frequente da solidão, nos rostos renegados que usam dos ópios licores, o atalho mais rápido para a mutação transformada em vazio. Porque ela era mortal e ao mesmo tempo surrealista. Dois mundos antagônicos.
Por quatro anos tentou fugir da realidade através da magia de Paris e nesse tempo conseguiu. Mas voltar às velhas lembranças do passado na Argentina que nasceu, foi uma dose sem itinerário para a sua constância inabitada, confrontada com a realidade insuportável de ser. O espelho quebrou-se. O rosto mostrou-lhe o vazio.
Por: Fernanda Curcio.
Parabéns Leo, pelas publicações, dás sempre o teu toque pessoal de muita sensibilidade.
Lindo, tudo aqui.
Bjnhos
Simplesmente perfeito...
Que saudade desse espaço tão bem cuidado, que nos faz refletir e que nos transporta para nosso interior...
Beijo grande!
Eu gosto muito disso, da procura. Eu, que procuro tanto, compadeço dessas almas perdidas, procurando sentido e responsabilidade, senão nos outros, que seja neles mesmos.
Lindo!
Para ler Alejandra é preciso respiração e uma dose de embriaguez.Escrever sobre ela foi um trajeto intenso.Uma escrita que reflete o interior da poetisa, um surreal sem intenção, sem ser programático.
então veja....*_* abraços!
"Desdobrei minha orfandade."
Belísssimos versos... metáfora perfeita.
Beijo
Jan
Acontece.
BeijO
Leo, lindo verso. O espelho às vezes não mostrar o real reflexo.
Bjo no coração.
Vir aqui é colocar a cultura em dia! Gostei de conhecer a poetisa Alejandra Pizarnik.
Beijos
Licores furiosos...
Hummmm!
matando saudades daqui
=)
bjo Leo
Gosto dos escritos dela,
Da necessidade,
Da melancolia,
Da saudade,
Das esperas,
Um beijooooooooo
Sem dúvida, um belo poema, Leo.
Passei expressamente para lhe dizer que hoje a Margarida, Loli, do Banzai celebra o seu aniversário.
Aqui falta pouquinho para acabar o dia.
Sei dela, pouco, mas o suficiente para dizer que está bem.
Publicou um livro e está noutra onda que não a da Blogosfera, pelo menos por agora.
Beijo
Ná
Oi, Léo. passando para agradecer sua visita e conhecer melhor o seu blog. Bjs e boa semana.
Acho que me sinto muito assim.
Abraço meu, doce Leo.
Fernanda,
Você é um primor! Adoro tuas dissertações! Não pude ler da forma que queria, saboreando, li aos tropeções, mas vou copiar e colar tudo em meus arquivos, para, depois, me sorver dessa maravilha de poema e de descrição.
Adorei isso:
"Suas metáforas entregam-nos a possibilidade de construir significados através da consciência, aspecto deixado de lado na sua poética, já que caminha incessante, às trilhas do inconsciente indissociado de sentido vocabular, expressão contida no significante, não no significado. "
Parabéns pelo trabalho! Vindo aqui, eu só aprendo. Obrigada!
Suzana/LILY
E ai menino Leo,
saudades, desculpe minha ausencia por aqui, andei sumida até do meu blog.
Beijo querido, muito tocante o trecho!
Pra poder esquecer né?.
Lindo post moço!
=)
O que fazem da gente na infância ficará para sempre guardado na memória. O que se constitui de lá pra cá, subjetivamente, é também (entre outras coisas) o que espera de si mesmo e do outro.
Beijo e carinho, meu amigo Leo.
PS. tô fugindo do livro de econômia do Parkin (e não Peter, rs) pro blog um pouquinho, que estou quase ficando louca...
Ele tem duas facetas, tanto quanto todos nós temos nossos momentos.
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