Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol...


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

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Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor — este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.



Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fado: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Faze
tua cidade eterna, e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor — este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida.

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Poema: Thiago de Mello, Sugestão.
Arte: Duy Huynh, A song after the rain has gone.

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

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Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.



Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.

Depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?

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Poema: Charles Bukowski
Arte: Edward Hopper. Automat, 1927.

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

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Sonhamos juntos
juntos despertamos
o tempo faz e desfaz
enquanto isso

não lhe importam teus sonhos
nem meus sonhos
somos rudes
ou demasiado cuidadosos

pensamos que não cai
essa gaivota
cremos que é eterno
este exorcismo
que a batalha é nossa
ou de ninguém

juntos vivemos
sucumbimos juntos
mas essa destruição
é uma piada
um detalhe uma brisa
um vestígio
um abrir-se e fechar-se
o paraíso

já nossa intimidade
é tão grande
que a morte a esconde
em seu vazio
quero que me conte
o luto que te calas
de minha parte te ofereço
minha última confiança

estas só
estou só
mas às vezes
pode a solidão
ser
uma chama.

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Poema: Mário Benedetti

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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

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Entre as coisas que voam
e as coisas que ficam



vôo e fico.

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Poema: Maria Esther Maciel.
Arte: René Magritte, vitória.

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domingo, 13 de fevereiro de 2011

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...Três dimensões, que nada,
Tudo é chato, e você não está aqui.
Cartas, papéis, selos
E branco. E preto.
Datilografá-lo, e
Pronto.
O gotejar, o líquido gotejar
Da chuva na calha
É a voz que me resta
Nesta noite.
E o Clic-clic
Duro e rápido Clic-clic
Do relógio
Dói bastante,
É o coração que resta a bater
Para mim esta noite.


O leito estreito,
A cama de ferro
É o vão que resta
E o calor que resta...
Resta, resta.
Para a cama e dormir
E sem lágrimas escorrem
Os segundos informes
Minutos, horas
E você nunca
Os pingos da chuva choram
E você nunca
E Tic-tic
Tic- tic
Passam as horas.

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Poema: Sylvia Plath, Os Diários de...
Arte: Toul'se Lautrec, Rosa La Rouge

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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

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Chão humilde. Então,
riscou-o a sombra de um voo.



"Sou céu!" disse o chão.

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Poema: Guilherme de Almeida
Fotografia retirada do google

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sábado, 5 de fevereiro de 2011

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Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele foi feito. Oceanos, montanhas. O grave anti-espetáculo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.

Texto: Cormac McCarthy, A estrada.
Arte: Candido Portinari, Guerra e Paz.

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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

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Fui visitar o único geômetra verdadeiro, meu amigo.

Comoveu-me vê-lo tão atento ao chá e as brasas e à cafeteira e ao cântico da água. Provou o líquido e depois ficou à espera, porque o chá expele lentamente o aroma. Impressionou-me agradavelmente que, durante esta curta meditação, ele permanecesse mais distraído pelo chá do que por um problema de geometria:

- Tu, que és um sábio, não desprezas os trabalhos humildes...

Mas ele não me respondia. Depois de ter enchido, todo satisfeito, as nossas xícaras:

- Eu, que sou um sábio...que entendes tu por isso? havia o tocador de guitarra de desprezar o cerimonial do chá pela simples razão de saber qualquer coisa acerca das relações entre as notas? Eu sei qualquer coisa acerca das relações entre as linhas de um triângulo. No entanto, agradam-me o canto da água e o cerimonial que há de honrar o rei, meu amigo...

Ficou uns instantes pensativo e acrescentou:

- Que sei eu... eu não acredito que os meus triângulos me esclareçam quanto o prazer que o chá nos dá. Mas pode acontecer que o prazer do chá me esclareça um pouco acerca dos triângulos...

Texto: Saint Exupéry, Cidadela.
Arte: Jean Hans Arp, Formas Geométricas.

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