Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol...


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

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Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro



Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

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Arte: Salvador Dalí. A desintegração da memória, 1954.
Poema: David Mourão-Ferreira. Ladainha dos póstumos natais, 1986.

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

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Meu nome,
desenho a giz
no muro de tempo.



Choveu,
sumiu.

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Poema: Helena Kolody. Grafite, 1988.
Arte: Willem DeKooning. Mulher V, 1952.

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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

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Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.


A recordação é uma traição à natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

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Poema: Alberto Caeiro. Antes o voo da ave, XLIII.
Arte: Andrew Wyeth. Turkey Pond, 1944.

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domingo, 6 de novembro de 2011

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Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.



Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

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Poema: Ana Cristina César.
Arte: Toulouse Lautrec. Loie Fuller 1892.

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terça-feira, 25 de outubro de 2011

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Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

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Poema: Cecília Meireles. Retrato.
Arte: Vincent VanGogh. Rosto de camponesa com touca de renda esverdeada, 1885.

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terça-feira, 4 de outubro de 2011

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Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.


Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

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Poema: Manuel Bandeira. A estrela.
Arte: Andrew Wyeth. Mulher na porta.

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

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Até agora eu não me conhecia,
julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera.
Tão clara como a fonte e como o dia.


Mas que eu não era EU não o sabia
mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim...e não me via!

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Poema: Florbela Espanca. Eu.
Arte: Norman Rockwell, Girl at her Mirror, 1954.

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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

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Entre os mortos, num bombardeio ao amanhecer,
Havia um homem de cem anos.

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Texto: Dylan Thomas.
Fotografia: Ângelo Maciel.

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terça-feira, 6 de setembro de 2011

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A mão que assinou o papel derrubou uma cidade;
Cinco dedos soberanos tributaram a respiração,
Duplicaram a esfera dos mortos e reduziram um país à metade;
Esses cinco reis levaram um rei à morte.

A poderosa mão chega a um ombro arqueado,
As juntas dos dedos foram imobilizadas pelo gesso;
Uma pena de ganso pôs um fim ao crime
Que deu fim à troca de palavras.



A mão que assinou o tratado fez brotar a febre,
E cresceu a fome, e vieram os gafanhotos;
Grande é a mão que mantém o seu domínio
Sobre o homem por ter ele escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos, mas não aplacam
A ferida cicatrizada nem acariciam a fronte;
Há mãos que regem a piedade como outras o céu;
As mãos não têm lágrimas para derramar.

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Poema: Dylan Thomas, The hand that signed the paper.
Arte: John Rogers, Council of war.

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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

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Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,



são eternos como é a natureza.

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Poema: Pablo Neruda.
Arte: Edvard Munch, Lovers on the beach.

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domingo, 14 de agosto de 2011

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Meu pai sempre me prometeu
Que viveríamos na França
Íamos de barco pelo rio Sena
E eu gostaria de aprender a dançar.

Vivíamos em Ohio, e então
Ele trabalhou nas minas
Os sonhos dele eram como barcos
Sabíamos que seria navegar no tempo.


Minhas irmãs cresceram e foram embora
Para Denver e Cheyenne
Casaram-se com seus sonhos de adulto
Os liláses e os homens.

Eu fiquei para trás, o mais novo
ainda dançava sozinho.
Esperando, esperando que os sonhos do meu pai
um dia pudessem me levar para casa.

Eu vivo em Paris agora
Minhas crianças dançam e sonham
Ouvem modos de vida de um mineiro
Em palavras que nunca dizem.

Eu navego em minhas lembranças de casa
Como barcos cruzando o Sena
E vendo os olhos do meu pai
Assistindo o pôr do sol
Que se define nos olhos de meu pai.

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Arte: Edward H. Potthast

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Minha música não quer se bela
não quer ser má.
Minha música não quer nascer pronta,
Minha música não quer redimir mágoas.


Minha música quer estar além do gosto,
minha música quer ser de categoria nenhuma,
minha música quer só ser música.

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Letra: Adriana Calcanhotto, minha música.
Arte: Cândido Portinari, músico Clarinetista.

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domingo, 31 de julho de 2011

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Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma;
todo homem é um pedaço do continente, uma parte
de terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo
mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido
um promontório, ou perdido, ou perdido o solar de
um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer
homem diminui a mim, porque na humanidade me
encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar
por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

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Arte: Duy Huynh.
Poema: John Donne. Meditação 17.

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sexta-feira, 22 de julho de 2011

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Minha cabeça cortada
Joguei na tua janela
Noite de lua
Janela aberta

Bate na parede
Perdendo dentes
Cai na cama
Pesada de pensamentos


Talvez te assustes
Talvez a contemples
Contra a lua
Buscando a cor de meus olhos

Talvez a uses
Como despertador
Sobre o criado-mudo
Não quero assustar-te
Peço apenas um tratamento condigno
Para essa cabeça súbita
De minha parte

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Poema: Paulo Leminski.
Arte: Edward Hopper, Boy & Moon.

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quarta-feira, 13 de julho de 2011

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Quanto mais fecho os olhos,
melhor vejo...



Meu dia é noite quando estás ausente
e à noite eu vejo o sol
se estás presente.

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Poema: William Shakespeare, Soneto 35.
Arte: Marc Chagall, Couple with candles & white blossoms

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sábado, 2 de julho de 2011

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- Seu cabelo está cheiroso, Falei, aspirando o perfume...
- E o meu olho?, ela perguntou...



- O que tem seu olho?
- Também está cheiroso?
- Por que o olho estaria cheiroso?
- Entrou sabão nele, Ela explicou.

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Arte: Joaquim Sorolla, After Bath.
Texto: Sylvia Plath.

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domingo, 26 de junho de 2011

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Embora a morte e a vida se oponham uma a outra, como palavras que são, o certo é que só podes viver daquilo que te pode fazer morrer. E o que recusa a morte, recusa a vida.

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Texto: Saint Exupéry, Cidadela.
Arte: Adolphe Bouguereau, Garota defendendo-se de Eros, 1880.

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sábado, 18 de junho de 2011

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As coisas não querem mas ser vistas
por pessoas razoáveis:



Elas desejam ser olhadas de azul -
que nem criança que você olha de ave.

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Texto: Manoel de Barros.
Arte: René Magritte. O mundo belo, 1962.

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quarta-feira, 8 de junho de 2011


Adiantei consideravelmente no conhecimento da felicidade e passei a encará-la como problema no dia em que soube ver nela o fruto da escolha de um cerimonial criador de uma alma feliz e não um presente estéril de objetos vãos. Porque não é possível proporcionar a felicidade aos homens como provisão.

Mas nem por sombras acredito que possas ir buscar a tua felicidade à solidão, ao vazio, à nudez, que aliás podem-te levar ao desespero.

Embora a experiência me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifício do que entre os sedentários dos oásis férteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento se opusesse à natureza da felicidade. Acontece simplesmente que, onde os bens são em maior número, oferecem-se aos homens mais possibilidades de se enganarem quanto à natureza das suas alegrias: estas, efetivamente, parecem provir das coisas, quando resultam do sentido que essas coisas assumem em tal país ou em tal morada. Pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior facilidade e façam circular mais vezes riquezas vãs. Como os homens do deserto ou do mosteiro não possuem nada, sabem muito bem de onde lhes vem as alegrias e lhes é assim mais fácil salvarem a própria fonte do seu fervor.

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Arte: Adolphe Bouguereau. Temptation, 1880.
Texto: Saint Exupéry. Cidadela.

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sábado, 28 de maio de 2011

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Ela teimou e enfrentou
O mundo
Se rodopiando ao som
Dos bandolins...

Como fosse um lar
Seu corpo a valsa triste
Iluminava e a noite
Caminhava assim

E como um par
O vento e a madrugada
Iluminavam a fada
Do meu botequim...




Valsando como valsa
Uma criança
Que entra na roda
A noite tá no fim

Ela valsando
Só na madrugada
Se julgando amada
Ao som dos Bandolins...

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Letra: Oswaldo Montenegro, Bandolins.
Arte: Pablo Picasso, Three Dancers, 1925.

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sábado, 21 de maio de 2011

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Entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me falta.

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Poema: Alice Ruiz
Arte: Henri Matisse, Woman Beside Water, 1905.

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domingo, 15 de maio de 2011

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O Amor toma banho de sol nos olhos dela,
O Amor percorre as meadas de suas madeixas,
O Amor se perde em cada um dos lábios dela
E mil beijos ali colhe e a li deixa;
Em cada parte dela, visível o Amor;
Mas, ah! não penetra o seu interior.

Lá dentro habitam os inimigos do Amor,
A malícia, a inconstância, a altiveza.
Assim a face da terra se enfeita em flor,
Em verdes vários e em tanta beleza,
Mas lá dentro estão o inferno e a escuridão,
Lá vivem os espíritos maus em danação.





Pois comigo, ai de mim, acontece o contrário:
A morte e a treva jazem em meus olhos em pranto,
Meu rosto pálido, em desespero, solitário,
É justamente o oposto do Amor, no entanto,
Ele, dentro de mim, como o tirano persa,
Mantém alta corte invisível, pois imersa.

Oh! toma meu coração, e então ficará
Teu íntimo com bom suprimento de amor,
E dá-me o teu, que está alegria tornará
Todo amorável meu eu exterior.
Mas que troca! Eu, revestido de feminina
Graça, e tu, interiormente, masculina.

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Poema: Abraham Cowley, A Troca.
Arte: Lasar Segall, Encontro, 1924.

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domingo, 8 de maio de 2011

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Sem fazer barulho abri a janela e sentei-me na cama, não ousava me mexer com medo que me ouvissem lá embaixo, lá fora às coisas também pareciam congeladas, paralisadas num propósito mútuo.



Nunca mais esses momentos serão possíveis para mim, mas ultimamente tenho sido muito hábil para captar, se ouvir com atenção, o som dos soluços que romperam quando me encontrei sozinho com mamãe, na realidade seu eco nunca cessou.

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Texto: Marcel Proust, Em busca do tempo perdido.
Arte: Edvard Munch, A mãe morta e a criança, 1900.

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segunda-feira, 2 de maio de 2011

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Embora eu tenha de partir, eu te asseguro
Que em nossas almas não haverá separação.
Elas são uma, e, assim como bloco de ouro
Que é distendido em folha, juntas ficarão.

Ou se elas são duas, serão duas apenas
Como duas, as hastes gêmeas de um compasso:
Tu és a haste fixa, mas moves-te em verdade
Todas as vezes que a outra alma avança um passo.



E, enquanto a outra lá bem longe circunvaga,
Essa em seu centro, p'ra ela inclina-se depressa,
Solícita; e só se ergue de novo ereta
Quando a outra haste de sua viagem regressa.

Assim és tu p'ra mim, que, como haste oblíqua,
Obliquamente vago distante de ti;
Tua permanência faz perfeitos meus circuitos
E ajuda-me a voltar ao ponto de que parti.

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Poema: John Donne, A valediction: forbidding mourning.
Arte: Marc Chagall, Le Coq sur Paris.

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quarta-feira, 27 de abril de 2011

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De mel é o sabor das lembranças
trazidas de minhas andanças
pra enfeitar sua saudade
Eu trouxe canções e flores
e um paraíso de cores
pra pintar sua cidade.



O que me prendeu por aqui
foi seu sorriso franco
e esse doce no olhar
Eu vim pra demorar bem pouco menina
agora eu quero ficar.

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Poema: Zé Geraldo.
Arte: Antônio Mancini, young girl laughing.

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sexta-feira, 15 de abril de 2011

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À esperança o meu relógio ofereci:
Dela uma âncora recebi.

Velho livro de orações dei-lhe de presente:
Retribuiu-me com uma lente.

Dei-lhe então um frasco de lágrimas antigas:
E ela, algumas verdes espigas.



Nada mais te trago, não aguento tua tardança -
O que eu queria era uma aliança.

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Arte: George Watts, Hope.
Poesia: George Herbert, Hope.

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terça-feira, 12 de abril de 2011

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Tudo mudou tão depressa em volta de nós: relações humanas, condições de trabalho, costumes...Até mesmo a nossa psicologia foi subvertida em suas bases mais íntimas. As noções de separação, ausência, distância, regresso, são realidades diferentes no seio de palavras que permaneceram as mesmas. Para apreender o mundo de hoje usamos uma linguagem que foi feita para o mundo de ontem, E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza apenas porque corresponde melhor à nossa linguagem.

Cada progresso nos expulsou para um pouco mais longe ainda de hábitos que mal havíamos adquirido; na verdade somos emigrantes que ainda não fundaram a sua pátria.

Somos todos bárbaros novos que ainda se maravilham com seus novos brinquedos. Não tem outro sentido nossas corridas de avião. Este sobe mais alto, aquele corre mais depressa. Esquecemos por que o fazemos correr. A corrida, provisoriamente, fica mais importante que o seu próprio objetivo. E sempre é assim mesmo.

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Texto: Saint Exupéry, Terra dos homens.

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

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Quando acordei, a cidade falou.
Pássaros e relógios e campanários
Se alvoroçaram junto à multidão coleante,
O réptil corrompe numa chama
Os saqueadores e os ladrões do sono,
O mar da casa ao lado dispersou
As rãs e os demônios e a cigana,



Enquanto lá fora um homem, mergulhado
Até a cabeça em seu próprio sangue,
Degolava a manhã a navalhadas.

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Poema: Dylan Thomas, Quando acordei.
Arte: Candido Portinari, Painel Guerra.

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sábado, 2 de abril de 2011

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Nenhum amor atinge o seu mais alto grau
Enquanto a vista alheia teme, como um mal.



O amor é uma luz sempre crescente e constante;
Seu primeiro minuto após meio-dia é noite.

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Trecho: John Donne, preleção sobre a sombra.
Arte: Advard Munch, olhos nos olhos.

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segunda-feira, 28 de março de 2011

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Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.



Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso
e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

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Poema: Nelson Ascher
Arte: Govinder Nazran

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sexta-feira, 25 de março de 2011

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Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.



Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a “normalidade” é uma ilusão imbecil e estéril.


Poema: Oscar Wilde

Dedico à querida amiga Loli em seu aniversário.

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quinta-feira, 24 de março de 2011

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Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.



Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

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Poema: Drummond de Andrade. Balada do amor.
Fotografia: Robert Doisneau, Hôtel de Ville.

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quinta-feira, 17 de março de 2011

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Lua
morta


Rua
torta

Tua
porta

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Poema: Cassiano Ricardo, Serenata Sintética.
Arte: Tarsila do Amaral, Lua.

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sábado, 12 de março de 2011

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Querido, a noite inteira
Eu passei oscilando, morta, viva, morta, viva.
Os lençóis opressivos como um beijo de um devasso.



Sou por demais pura para ti ou para alguém.
Teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa a Deus.
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Poema: Sylvia Plath, 40 Graus de Febre.
Arte: Tamara de Lempicka, Dormeuse.

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quarta-feira, 9 de março de 2011

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Como um dia numa festa
Realçavas a manhã
Luz de sol, janela aberta
Festa e verde o teu olhar.


Abre os olhos, mostra o riso
Quero, careço, preciso
De ver você se alegrar
Eu não estou indo embora
Tou só preparando a hora
De voltar.
De voltar.

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Letra: Caetano Veloso, Um Dia.
Arte: René Magritte, The Son of Man.

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terça-feira, 8 de março de 2011

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Sou apenas uma gota a mais no imenso mar de matéria, definida, com a capacidade de perceber minha existência. Entre os milhões, ao nascer eu também era tudo, potencialmente. Eu também fui cerceada, bloqueada, deformada por meu ambiente, pela manifestação da hereditariedade. Eu também arranjarei um conjunto de crenças, de padrões pelos quais viverei, e no entanto a própria satisfação de encontrá-los será manchada pelo fato de que terei atingido o ápice em matéria de vida superficial, bidimensional – um conjunto de valores.

Meus Deus, a vida é solidão, apesar de todos os opiáceos, apesar do falso brilho das “festas” alegres sem propósito algum, apesar dos falsos semblantes sorridentes que todos ostentamos. E quando você finalmente encontra uma pessoa com quem sente poder abrir a alma, para chocada com as palavras pronunciadas – são tão ásperas, tão feias, tão desprovidas de significado e tão débeis, por terem ficado presas no pequeno quarto escuro dentro da gente durante tanto tempo. Sim, há alegria, realização e companheirismo – mas a solidão da alma, em sua autoconsciência medonha, é horrível e predominante.

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Texto e retrato de Sylvia Plath.

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quinta-feira, 3 de março de 2011

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Você compreende, sem alimento, depois de três dias de marcha, meu coração não devia estar batendo com muita força...

Pois em certo momento, quando eu progredia ao longo de uma encosta vertical, cavando buracos para enfiar as mãos, o coração me caiu em pane...

Hesitou, deu mais uma batida...Uma batida estranha...Senti que se ele hesitasse um segundo mais seria o fim.

Fiquei imóvel, escutando...nunca - está ouvindo? - nunca, num avião, me senti tão preso ao ruído do motor como, naquele momento, às batidas do meu próprio coração.

E eu lhe dizia: Vamos, força! Veja se bate mais...Hesitava mas depois recomeçava, sempre...
Se você soubesse como tive orgulho do meu coração!

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Texto: Saint Exupéry, Terra dos homens.

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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

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Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor — este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.



Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fado: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Faze
tua cidade eterna, e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor — este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida.

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Poema: Thiago de Mello, Sugestão.
Arte: Duy Huynh, A song after the rain has gone.

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

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Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.



Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.

Depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?

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Poema: Charles Bukowski
Arte: Edward Hopper. Automat, 1927.

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

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Sonhamos juntos
juntos despertamos
o tempo faz e desfaz
enquanto isso

não lhe importam teus sonhos
nem meus sonhos
somos rudes
ou demasiado cuidadosos

pensamos que não cai
essa gaivota
cremos que é eterno
este exorcismo
que a batalha é nossa
ou de ninguém

juntos vivemos
sucumbimos juntos
mas essa destruição
é uma piada
um detalhe uma brisa
um vestígio
um abrir-se e fechar-se
o paraíso

já nossa intimidade
é tão grande
que a morte a esconde
em seu vazio
quero que me conte
o luto que te calas
de minha parte te ofereço
minha última confiança

estas só
estou só
mas às vezes
pode a solidão
ser
uma chama.

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Poema: Mário Benedetti

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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

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Entre as coisas que voam
e as coisas que ficam



vôo e fico.

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Poema: Maria Esther Maciel.
Arte: René Magritte, vitória.

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domingo, 13 de fevereiro de 2011

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...Três dimensões, que nada,
Tudo é chato, e você não está aqui.
Cartas, papéis, selos
E branco. E preto.
Datilografá-lo, e
Pronto.
O gotejar, o líquido gotejar
Da chuva na calha
É a voz que me resta
Nesta noite.
E o Clic-clic
Duro e rápido Clic-clic
Do relógio
Dói bastante,
É o coração que resta a bater
Para mim esta noite.


O leito estreito,
A cama de ferro
É o vão que resta
E o calor que resta...
Resta, resta.
Para a cama e dormir
E sem lágrimas escorrem
Os segundos informes
Minutos, horas
E você nunca
Os pingos da chuva choram
E você nunca
E Tic-tic
Tic- tic
Passam as horas.

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Poema: Sylvia Plath, Os Diários de...
Arte: Toul'se Lautrec, Rosa La Rouge

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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

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Chão humilde. Então,
riscou-o a sombra de um voo.



"Sou céu!" disse o chão.

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Poema: Guilherme de Almeida
Fotografia retirada do google

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sábado, 5 de fevereiro de 2011

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Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele foi feito. Oceanos, montanhas. O grave anti-espetáculo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.

Texto: Cormac McCarthy, A estrada.
Arte: Candido Portinari, Guerra e Paz.

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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

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Fui visitar o único geômetra verdadeiro, meu amigo.

Comoveu-me vê-lo tão atento ao chá e as brasas e à cafeteira e ao cântico da água. Provou o líquido e depois ficou à espera, porque o chá expele lentamente o aroma. Impressionou-me agradavelmente que, durante esta curta meditação, ele permanecesse mais distraído pelo chá do que por um problema de geometria:

- Tu, que és um sábio, não desprezas os trabalhos humildes...

Mas ele não me respondia. Depois de ter enchido, todo satisfeito, as nossas xícaras:

- Eu, que sou um sábio...que entendes tu por isso? havia o tocador de guitarra de desprezar o cerimonial do chá pela simples razão de saber qualquer coisa acerca das relações entre as notas? Eu sei qualquer coisa acerca das relações entre as linhas de um triângulo. No entanto, agradam-me o canto da água e o cerimonial que há de honrar o rei, meu amigo...

Ficou uns instantes pensativo e acrescentou:

- Que sei eu... eu não acredito que os meus triângulos me esclareçam quanto o prazer que o chá nos dá. Mas pode acontecer que o prazer do chá me esclareça um pouco acerca dos triângulos...

Texto: Saint Exupéry, Cidadela.
Arte: Jean Hans Arp, Formas Geométricas.

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domingo, 30 de janeiro de 2011

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Quando acordei esta manhã no quarto úmido e escuro, ouvindo o tamborilar da chuva por todos os lados, tive a impressão de que havia sarado. Estava curada das palpitações no coração que me atormentaram nos últimos dois dias, praticamente impedindo que eu lesse, pensasse ou mesmo levasse a mão ao peito. Um pássaro alucinado se debatia lá dentro, preso na gaiola de osso, disposto a rompê-lo e sair, sacudindo meu corpo inteiro a cada tentativa. Senti vontade de golpear meu coração, arrancá-lo para deter aquela pulsação ridícula que parecia querer saltar do meu coração e sair pelo mundo, seguindo seu próprio rumo. Deitada, com a mão entre os seios, alegrei-me por acordar e sentir a batida tranquila, ritmada e quase imperceptível de meu coração em repouso. Levantei-me, esperando a cada momento ser novamente atormentada, mas isso não ocorreu. Desde que acordei estou em paz.

Texto: Sylvia Plath
Arte: Egon Schiele

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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

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Se tu queres amar,
procura logo o mar.
Ali enlaça o corpo
salgado noutro corpo.


Tenta imitar a teia
das ondas e marés.
Dança na branca areia
Outro serás quem és."

Poema: Adriano Espinola
Arte: Merritt Chase

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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

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A terra gira para que todas as pessoas do mundo possam olhar
para o espaço em todas as direções. Assim cada um pode ver as
estrelas e tudo o que existe de qualquer lugar onde esteja...
não importa onde você mora, não há nenhum único pedacinho da
gloria do céu que ficará escondido de você.


É só que eu nunca tinha pensado que o sol reflete uma
luz emprestada de Deus, do mesmo modo que a lua
reflete uma luz emprestada do sol.

Texto: Jostein Gaarder
Arte: Maxfield Parrish

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sábado, 15 de janeiro de 2011

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Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...


Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas doces de um beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Poema: Florbela Espanca
Arte: Marc Chagall

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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

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Carne e osso não passam de terra e água, mas Deus
soprou um pouco do seu espírito dentro de vocês.

E por isso que há uma parte de você que é Deus.

Texto: Jostein Gaarder
Arte: Auguste Rodin

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

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Indubitavelmente, raríssimas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo desse fenômeno em que consiste o amor e como é o amor uma espécie de criação de um indivíduo suplementar, distinto daquele que usa no mundo o mesmo nome, e que formamos com elementos tirados na maioria de nós mesmos.

Texto: Marcel Proust
Arte: Frank Dicksee

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domingo, 9 de janeiro de 2011

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Como a vida é um movimento rápido, um fluir continuo, mutante, como estamos sempre a nos despedir, indo a lugares, vendo pessoas, fazendo coisas. Só na chuva, às vezes, só quando a chuva cai, limitando seu raio de atuação que já é desgracadamente reduzido, só quando você senta e fica escutando ao lado da janela, enquanto o ar frio e úmido sopra suave na sua nuca – só aí você pensa e sente aflição. Sente o dia escorrer, esquivo como lisas minhocas rosadas, por entre os dedos, e você analisa o que tem aos dezoito anos, pensa no modo como consegue, com dificuldade e concentração, trazer de volta um dia, um dia de sol, céu azul e aquarelas á beira-mar. consegue se recordar das observações sensuais que tornam aquele dia real, e pode se iludir – quase – pensando que seria capaz de retornar ao passado e reviver os dias e horas num curto período. Que nada, a busca do tempo passado é mais difícil do que você pensa, e o tempo presente acaba devorado por essas buscas melancólicas. O filme de seus dias e noites está enrolado dentro de você, bem apertado, para nunca mais ser passado – e os flashbacks ocasionais são vagos, desfocados, irreais, como se os visse através da neve que cai. Agora você começa a ficar com medo. Não crê em Deus nem na vida após a morte, portanto não pode contar com o paraíso quando sua alma inexistente ascender. Você acredita que tudo precisa vir do homem, e o homem é bem criativo em seus bons momentos – muito maduro, muito perceptivo para a sua idade – quantos anos tem, agora? Quantos milhares de anos? Contudo, mesmo nesta era de especialização, de variedade e complexidade infinita e de uma miríade de escolhas, o que você pega para si no saco de surpresas? Gatos tem nove vidas, diz o ditado. Você tem uma; e nalgum ponto da fina linha tênue de sua existência há um nó cego, um coágulo, a batida suspensa que marca o final deste individuo em particular que se chama “Eu”, “Você” e “Sylvia”. Então você fica pensando em como agir, como ser – e você considera valores e atitudes. No meio do relativismo e do desespero, esperando que as bombas comecem a cair, que o sangue corra (como corre agora no Iraque, no Afeganistão, na Rússia) e escorra bem na frente dos seus olhos, você quer saber tomada por um enjoativo surto de pavor, como se agarrar à terra, às sementes da relva e da vida.


Sylvia Plath


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sábado, 8 de janeiro de 2011

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“Não dá para me enganar e escapar da constatação brutal de que não importa quanto você se mostre entusiasmada, não importa a certeza de que caráter é destino, nada é real, passado ou futuro, quando agente fica sozinha no quarto com o relógio tiquetaqueando alto no falso brilho ilusório da luz elétrica. E se você não tem passado ou futuro, que no final das contas são os elementos que formam o presente todo, então é bem capaz de descartar a casca vazia do presente e cometer suicídio. Mas a massa fria entranhada em meu crânio raciocina e papagaia, ‘penso, logo existo’ (...). Para que serve a boa aparência? Garantir segurança temporária? De que adianta o cérebro? Para dizer apenas ‘eu vivi e compreendi’?”.


Sylvia Plath


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